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Convergência

Um artigo excepcional do Advogado Felipe Gimenez, Procurador do Estado do MS, membro atuante da Coalizão Convergências, um dos mais proeminentes defensores da contagem pública dos votos em toda e qualquer eleição.                                     

Felipe Gimenez em discurso épico no Senado Federal

A vaidade cortesã serviu atalho à trama ardilosa do astuto alfaiate que convenceu um soberbo monarca a vestir-se do manto tecido com supostos fios mágicos visíveis apenas para os mais sábios. Vaidosos os conselheiros haviam aprovado a arte do falso tecelão porque admitir o contrário poderia arranhar suas reputações de virtude. O desfile do rei e os aplausos terminam no momento em que a honestidade de uma criança na rua denuncia: o rei está nu!

O conto se repete no Brasil há um quarto de século. Autoridades que nada enxergam do fato do escrutínio louvam o artefato mágico afirmando o prodígio. Como uma onda a Seita do Santo Byte segue fazendo prosélitos. Como poderia um juiz ou promotor eleitoral, nas singelas instâncias, se opor ao juízo da Corte Constitucional tão sábia e suprema? Afirmar que nada veem do escrutínio porque o fato ocorre em velocidade superior a mil kbps poderia arranhar suas reputações. Sem registro do pulso elétrico, naturalmente efêmero, contentam-se com o resultado posterior ao escrutínio. Seria arriscado para essas autoridades admitir que o voto gerado e extinto no ambiente digital já foi escrutinado sem que pudessem fiscalizar o evento. O momento crucial e fugaz passa despercebido restando unicamente o consequente produzido pela inteligência artificial fiel apenas ao seu criador. Sem registros concretos que permitam rastreio no mundo exterior a vontade manifesta pelo cidadão jamais será conhecida. Entretanto, aquele que ousar declarar que nada vê será vaiado pela Seita do Santo Byte em coro: retrógrado! E o desfile segue impulsionado pela fé e aplauso dos prosélitos. A procissão conduz o enterro da República.  Substantivos e adjetivos são embaralhados com o escopo de limitar a compreensão. Sufrágio, universal, voto, direto, secreto, escrutínio, democracia, república, soberania, popular. Nada importa além do credo. O manhoso tecelão segue em sua obra.

                                          Porém um exame responsável aponta que sufrágio é suffragium, sub (debaixo) e fragor (ruído, gritaria), no caso, aclamação pois relacionada a frangere (quebrar, separar). O sufrágio na origem etimológica aponta escrutínio (scrutinium), procura ou inquisição de scrutari, examinar ou procurar. No universo de indivíduos se dá a procura e separação de uma fração (fractio) que é partida ou quebrada (frangere) na busca da vontade da maioria. Universal adjetiva o sufrágio e enfatiza seu sentido como processo de deliberação coletiva. Universal é adjetivo derivado de universo. Universo é universum, unus (um) mais versus (tornado) particípio passado de vertere (tornar). Portanto, universo é tornado um. Ora, somente é possível tornar um o que já não é individual ou singular. O universo é o conjunto de indivíduos formado por um nexo lógico. Na hipótese do sufrágio o conjunto de indivíduos torna-se um no sufrágio pelo vínculo de cidadania. Assim, o sufrágio é etimológica e necessariamente universal. Nessa universalidade é estabelecida uma relação mútua de direito e obrigação entre o indivíduo e o universo do sufrágio (cidadãos eleitores e candidatos participantes da deliberação coletiva). A relação de reciprocidade se impõe do universo sobre o indivíduo e deste para o universo. Todos ouvem-se mutuamente e submetem-se ao escrutínio na busca da  vontade da maioria. Essa relação mútua estabelecida pelo falar e ouvir busca conhecer a vontade majoritária que caracteriza a essência universal do sufrágio. Não há fragor nem aclamação em monólogo. O sufrágio ontologicamente é universal.

Na Ágora grega a vontade do povo era manifesta e o destino da cidade estado traçado. Na pretensa ágora digital o cidadão não vê nem ouve o outro. Não há fragor. Não há relação mútua.  Não há reciprocidade. Não há universo. Não há sufrágio. As relações não são universais. O indivíduo trava um monólogo com a urna virtual de modo silencioso e submisso como súdito. Resta-lhe apenas a esperança de que será ouvido.

O sufrágio universal não é o voto mas o processo de deliberação coletiva.  Os artigos 14 da Constituição Federal e 82 do Código Eleitoral apontam que o voto é apenas um instrumento do sufrágio. O voto nem seu exercício se confundem com o sufrágio. São componentes do processo de deliberação. Não há palavra inútil na lei (verba cum effectu sunt accipienda) e a garantia constitucional não é apenas do direito de votar mas de compor o sufrágio. Participar do escrutínio e de sua fiscalização é inerente ao sufrágio. É direito de cidadania inalienável. Não pertence ao serviço eleitoral mas ao cidadão. A urna virtual por seu escrutínio secreto impede o sufrágio universal pois a relação do indivíduo com o universo do sufrágio é usurpada pelo serviço eleitoral que se interpõe rompendo a relação entre os indivíduos e fulminando tal universo em seu sentido próprio. O serviço eleitoral que deveria apenas ser servidor nessa relação entre cidadãos usurpa posição que não lhe pertence. O pretexto da arbitrariedade para usurpar o direito de cidadania é a cláusula pétrea do voto secreto. Ora, o voto não é secreto mas o seu exercício! Caso o voto fosse secreto se conservaria oculto sendo impossível seu processamento que necessariamente implica em ser conhecido. O espírito da lei nesse ponto consiste em garantir a privacidade do exercício desse direito preservando a liberdade de escolha. A infelicidade da redação legislativa é de fácil superação pelo hermeneuta pois é a vinculação do cidadão à declaração contida no voto que se buscou impedir.

Sob outro ângulo observa-se que o voto direto o é em sua substância (matéria e forma metafísicas). Na ordem constitucional a vontade do eleitor e sua manifestação se dão ao universo do sufrágio de modo direto. O artigo 82 do Código eleitoral didaticamente esclarece que o sufrágio é universal e direto. Obvio que isso decorre da essência do universo do sufrágio porque o fragor da deliberação está em seu âmago. Direto é sem mediação. O agente de uma ação direta determina ele próprio o objeto dessa ação sendo a causa eficiente dela. Determinar é de (para fora) e terminare (demarcar, limitar) de terminus (linha limite). Determinar, portanto, é definir as linhas limites do exterior existencial do ser. É a transformação da potência em ato. Estado de ser e não poder não ser.  O substantivo voto é direto na substância. A urna virtual não permite o voto direto pois impede que o cidadão determine o voto dando-lhe concretude. O dado gerado na urna virtual é colhido pela inteligência artificial construída por terceiros e nesse construto é processado pelos comandos estabelecidos ganhando determinação existencial na conformidade do artifício completamente alheio. A atualização metafísica da potência manifesta pelo cidadão não tem neste sua causa eficiente.

A representação meramente simbólica apresentada ao eleitor não é nada mais do que singelo e suposto símbolo. Suposto porque é puramente fruto do artifício da inteligência artificial. Não se trata necessariamente do dado que orientará o escrutínio digital, efêmero e secreto mas apenas daquilo que a inteligência artificial decidiu apresentar ao eleitor. É perfeitamente possível que a informação dada pelo monitor seja diferente daquela que instrui o escrutínio digital, secreto e efêmero. Oportuno lembrar o Teste de Turing (Alan Mathison Turing) que consiste em que uma inteligência artificial convença um ser humano de estar em um diálogo com outro humano. A proposta é baseada em uma brincadeira de salão denominada jogo da imitação onde três participantes jogam sem contato direto e dois deles tentam pelo diálogo indireto convencer falsamente o terceiro, que é juiz, sobre sua identidade sexual vencendo quem cumprir sua missão respectiva.

O que se dá no obscuro ambiente eletrônico, no presente do escrutínio, é ignorado pelo eleitor e pelas autoridades eleitorais. Apenas a totalização resultante é conhecida posteriormente sem qualquer rastreabilidade. No ambiente eletrônico  não ocorre a concretude do ser atualizado metafisicamente. O virtual não tem permanência própria do ato. O voto assente como vontade manifesta é potência que não atualiza por ação do eleitor. O dado digital gerado pela intervenção do votante é simples impulso elétrico. Mera potência do voto a ser conhecido no escrutínio. A indivisibilidade ontológica e filosófica própria do átomo grego (a negação, tomos cortar) esclarece que a partição importa em corrupção. Partir é deixar de ser. A eletricidade é fluxo de elétrons, não de átomos. Fluxo, movimento e corrente repelem a ideia de permanência, atualização. Como o rio de Heráclito a eletricidade só existe se houver movimento, mudança constante.  Permanência se opõe a movimento. A corrente elétrica é constante movimento de elétrons (contínuo ou alternado no sentido). Não se encontra ai o ato metafísico do voto a ser escrutinado. Quem ousa afirmar que uma lâmpada está acesa o faz desprezando a frequência (hertz) em que a mesma é e deixa de ser. A corrente elétrica é, na essência, um ser e não ser constante. Nesse contexto afirmar que o símbolo representativo do voto na urna virtual é o próprio ser voto, à míngua de qualquer rastro no plano concreto sensível ao humano, é substituir o simbolizado pelo símbolo. Ato de idolatria. A impermanência explica a volatilidade do dado digital completamente sujeito ao construto do programador e alheio ao domínio do cidadão eleitor.

Não se nega a existência do virtual mas cabe admiti-lo apenas  como potência metafísica. A potência não observa o princípio da não-contradição (o ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de modo algum). O virtual não é ato metafísico. O ato é congruente em ser pois é e não pode não ser de modo algum. Assim, a vontade manifesta do eleitor entregue à urna virtual nada mais é que potência podendo ser ou não ser. Sem a permanência do corpo concreto delimitado, físico e sensível ao humano o símbolo digital supostamente representativo do voto sempre poderá não ser o voto. Nada pode ser movido e motor de si mesmo e, portanto, o ato resultante na urna virtual é efeito de causa eficiente extrínseca (ação do programador) e alheia ao domínio do eleitor. Essência (forma e matéria) e existência (ato de ser) são distintas das causas extrínsecas (final e eficiente) do ato de ser. O que se tem na urna virtual não é o ser voto (vontade manifesta do eleitor) enquanto não for atualizado metafisicamente.

Ciência é o conhecimento do objeto mediante suas causas. A matéria (vontade) sem a limitação da forma (manifestação) é imperfeita porque a perfeição é a existência do ser determinado, o ato metafísico. O infinito não é porque ser implica em determinação, limite, finitude existencial, concretude, corpo. O dado em potência não é determinado (ato) porque poderá sempre não ser.  Dai decorre sua infinitude e imperfeição. Apenas o primeiro e único Motor Imóvel escapa a tal crivo. O signo (registro do voto) propriamente dito deve ser um rudimento de vínculo natural entre significante (vontade manifesta) e significado (escolha). O significante (vontade manifesta) deve encontrar coerência no significado (escolha) pelo nexo direto do indivíduo com o universo do sufrágio no qual se encontra o vínculo de cidadania. A essência da democracia torna imprescindível essa junção imediata. O voto somente  é na relação do indivíduo com o universo do sufrágio.

O corpo físico (signo) atualizado pelo registro da intervenção do eleitor é precisamente simbólico na medida em que representa o vínculo natural do indivíduo com o universo do sufrágio pois conserva a participação de ambos (universo e indivíduo). O dado no ambiente eletrônico  não é uma representação (signo) de um vínculo natural do significante com o significado porque o indivíduo e o universo do sufrágio não participam como causa na urna virtual. O corpo concreto (signo), oferecido pelo universo do sufrágio ao indivíduo que o compõe, registra a vontade manifesta diretamente caracterizando esse vínculo natural da relação. O símbolo necessariamente deve representar uma junção de vontades entre o indivíduo e o universo do sufrágio. Assim como o símbolo do negócio jurídico é o contrato, que une as manifestações de vontade das partes pela interveniência de ambas, o pacto no sufrágio entre o indivíduo e o universo de cidadãos não tem coerência lógica se a posição de alguma parte é usurpada pelo serviço eleitoral. O serviço eleitoral é terceiro estranho na relação e deve apenas servi-la como servidor que é.

O voto é necessariamente um pacto direto entre o indivíduo e o universo do sufrágio. Não deveria haver nessa relação lógica, política e jurídica qualquer invasão do serviço eleitoral. Apenas a ação de servir. Ocorre que no cenário atual o serviço eleitoral é protagonista e toma de assalto o papel do cidadão. O povo resta apenas figurante porque aquele que deveria ser servidor tomou para si o protagonismo da eleição fulminando o sufrágio no seu ser. Não há sufrágio universal sem escrutínio público!

O ente tem o ato de ser em potência mas não o é senão pela intervenção de uma causa eficiente extrínseca. Forma (universal) e matéria são causas intrínsecas substanciais do ser porém o ato de ser é dependente das causas extrínsecas final e eficiente. A doutrina de Aristóteles ensina que o movimento de atualização, consistente em transformar a potência em ato, exige etiologia apontando as causas final, eficiente, formal e material. O princípio da razão suficiente impõe que esta seja cabal, bastante. Se não o é então há razão diversa que denota mudança substancial no ser. O princípio da causalidade proporcional determina que o contido no efeito deve decorrer de sua própria causa e não de outra sob pena de  não ser. O princípio da identidade dos indiscerníveis (lei de Leibniz) estabelece que ante indiscerníveis se tem o mesmo ser. Ora, o dado digital na urna virtual não guarda como causa eficiente a ação do eleitor mas do criador da  inteligência artificial  sendo, portanto, discernível. Se discernível então não é o ser voto propriamente dito.

Apesar da reprovação da maioria absoluta da população o serviço eleitoral, operado pela presidência do TSE, insiste com sua aura de deidade cultivada no meio jurídico. O magistrado nessa função administrativa não faz jurisdição mas  ordinária e equivocadamente avoca para si arbítrio típico de julgador. Na República o império é da norma não da autoridade. Ocorre que o serviço eleitoral de coleta e processamento de votos não possui qualquer margem de jurisdição, arbítrio ou discricionariedade próprios de quem está investido de juízo.  O serviço eleitoral é objetivamente vinculado à lei e puramente executivo. Essa suposta prerrogativa arbitral exercida amplamente é o primeiro obstáculo posto pelo serviço eleitoral ao exercício da cidadania.

A origem desse mal está na teratológica acumulação de poderes que sobrepõe normatizar, executar e julgar o serviço eleitoral. Em outros termos, julgar a si mesmo! Todas essas funções de natureza necessariamente distintas em uma República são acumuladas na mesma instituição pública (a denominada “justiça eleitoral”). O quadro se agrava porque a administração superior do serviço eleitoral é, por previsão constitucional, sempre exercida por um juiz da corte constitucional (CF art. 119, parágrafo único). Em Roma o ditador era um juiz escolhido na população para ditar as regras necessárias para o  enfrentamento de uma grave crise e tinha amplo poder mas mandato finito e breve. Nossos juízes constitucionais contrariam o povo, geram anomia e tem mandato quase vitalício além de ignorarem a vontade majoritária do povo. Desprezam o artigo quinto da  lei de introdução ao direito que impõe a regra hermenêutica: na aplicação da lei o juiz atenderá as exigências do bem comum. Recentemente um ministro supremo afirmou que a vontade da maioria é ditatorial. A maioria somente se conhece em regimes democráticos porque há maioria quando a minoria importa em ser contada. Que regime repele a maioria?

O bem comum é o desejo manifesto pelo povo e positivado por seus representantes. Porém não é de se esperar que o colegiado constitucional julgue ilícita eventual ação do serviço eleitoral realizada por seus pares no tribunal vizinho em razão do revezamento que fazem entre uma casa e outra, entre uma função e outra (administrar e julgar). Sobre a vontade popular se sobrepõe a do juiz. Vale notar que jurisdição não é ciência do direito mas  apenas exercício de poder. Eventualmente coincidem. Outro ministro supremo, Luís Roberto Barroso, no livro Curso de direito constitucional contemporâneo, editora Saraiva, 9ª edição, página 297, segundo parágrafo, em síntese: “a solução dos problemas jurídicos não se encontra integralmente na norma jurídica e é preciso procura-la em outro lugar  pois a justiça está além dela”. Essa é a definição do pos-positivismo que orienta as decisões da atual composição do tribunal constitucional brasileiro. Durma-se com um barulho desses! Não há uma constituição mas onze e cada uma será ao gosto da oportunidade do tema em conflito. Nesse cenário o histórico lamentável de um quarto de século registra três tentativas do Poder Legislativo consistentes em, legitimamente, lançar luzes sobre o serviço eleitoral, especialmente, impondo o escrutínio público de votos. Tais normas foram desejadas pelo povo para seu bem comum mas solenemente fulminadas pelo administrador do serviço eleitoral como tal ou no expediente alternativo de juiz constitucional. As razões sempre causaram absoluta estranheza ao mundo jurídico e decepção na população.

Na suspensão lavrada na ADI 5889 e posterior julgamento de mérito a impressão do voto foi impedida por força de acrobática interpretação. Verdadeiro  presságio fez prever que a máquina impressora desvelaria o voto quebrando a cláusula pétrea do sigilo. O fato concreto, ainda que futuro e incerto, serviu de argumento no exame constitucional que deveria ser abstrato. A lei em tese foi maculada de inconstitucional, ainda que apenas determinasse a impressão do voto, porque supostamente quebraria o sigilo ao ser executada. Da eventual execução negligente, colhida do futuro incerto por meio de presságio, concluiu-se a inconstitucionalidade da própria lei.

Estranhamente a corte constitucional se recusa a ampliar o exame concreto do todo operacional da urna virtual. A evidente ineficácia do sistema em permitir o escrutínio público de votos não é objeto do método exegético adotado na ADI 5889 (exame de fato concreto). Sabemos que o exame de fato concreto é inadequado na via do controle constitucional abstrato mas serviu excepcionalmente para suspender e decepar a norma.

No campo das ditas auditorias o auditado (o próprio serviço eleitoral) se audita. Cabe pontuar aqui que em uma auditoria, embora se examine instrumentos e registros, o objeto final é a conduta humana. Então é fácil compreender que logicamente não se audita a urna virtual em si mas finalisticamente a conduta de seu operador humano, qual seja, o agente do serviço eleitoral. Entretanto, o agente eleitoral põe-se julgador da máquina como se ela mesma fosse objeto da suspeição publica. Sabe-se nessas ditas auditorias o que a urna virtual haveria de executar ou o que supostamente executou. Nunca é possível saber o que ocorre no momento presente do escrutínio digital efêmero e secreto. A cada voto confirmado a urna virtual realiza o escrutínio secreto identificando o teor do voto e destinando-o a algum beneficiário. Exigindo fé do cidadão o serviço eleitoral rejeita a recontagem de votos entregando apenas o sagrado Boletim de Urna e seu respectivo RDV (registro digital do voto).  Ambos resultantes do escrutínio já perdido no passado e irrecuperável posto que não há o voto em ato concreto no sistema puramente virtual.

Crer não é conhecer. A lição é de Pontes de Miranda na obra “O problema fundamental do conhecimento”, editora Bookseller, 2ª edição, pág. 27:  “Conhecer é cognoscere, não é só noscere. O cão, diz-se, conhece, e o homem conhece; mas o cum, que se pôs antes de gnoscere, teve função conceptual que se apagou, razão por que se estendeu aos outros animais, em vez de ficar para o homem. Dai haver o conhecimento e a revelação, mesmo íntima, do ato de conhecer, o que implica manifestação. Quem conhece, no sentido de poder afirmar que existe, que é, o conhecido, está apto a manifestar. Crer não é conhecer: vem de cord,  como coração.” Se não há manifestação direta sob domínio do eleitor ele próprio não conhece seu voto! Sabe apenas da potência que está em sua vontade. Afinal o voto ganha existência na relação havida no universo do sufrágio. Se persiste apenas no íntimo do eleitor não é voto mas apenas vontade. Dar conhecimento ao universo do sufrágio por instrumento concreto sob domínio do eleitor é imprescindível para a atualização metafísica do voto.

O erro cartesiano de supor que o voto existe apenas porque pensamos que está lá no ambiente eletrônico  é um dogma da Seita do Santo Byte (assim alcunhada pelo ilustre Professor Dr. Pedro Rezende – UNB). Pontes de Miranda na obra “O problema fundamental do conhecimento”, editora Bookseller, 2ª edição, pág. 68, ensina que: “O erro cartesiano pôs o pensador, o sujeito (como um prejeto, e pois suprajeto), antes do pensamento, e empurrou o espírito humano no declive idealista. O erro kantiano ocorre depois, durante a queda, e por isso já constitui tentativa de ‘segurar-se’ na realidade. Todavia, nele o objetivo vem depois, tirado do subjetivo. No problema dos universais, Descartes e Spinoza vão, em consequência de suas atitudes iniciais, procurar com eles descrever o real, o objeto, quando o verdadeiro caminho para os explicar seria partir do objeto, do particular, não para remergulhar no espírito (solipsismo, explicação pela generalização), mas para descrever como eles se formaram. A relação mais simples que se pode imaginar, a mais fina, portanto, que abrange as outras, é a relação de estar em relação, a que Moritz Schlick chamou de correspondência pura, reine Zuordnung. Mas ele a prende ao mundo psíquico, quando diz que o fato de ordenar e de pôr em correspondência (das Ordnen und Zuordnem) é precisamente o que se designa como pensar: pensar só significa, para ele, uma função – a função de por em correspondência. Dito assim, o idealismo ressalta. O pensar é bem isso, mas isso não é só o pensar. Se o pensar é isso, é porque entra no que denominamos relação e, como uma delas, como tal se define. Tudo que é relação, inclusive o pensar, cabe na relação mais vasta, que é a de estar em relação: se penso, ponho-me em relação, e estabeleço relação entre termos. O que se tira é que a realidade do pensar cabe na realidade global das relações e é uma relação que ‘estabelece’ relações.”

A urna virtual (onde o voto existe apenas em potência) estabelece qual relação entre o eleitor e o universo do sufrágio senão de fé?  Se o estado (lato sensu) republicano é laico como é possível exigir fé do cidadão? O voto somente é na relação entre indivíduo e universo do sufrágio.

Nelson Lehmann da Silva, na obra “A religião civil do estado moderno”, editora Vide Editorial, 2ª edição, pág. 84, remetendo ao “Leviatã” de Thomas Hobbes (poder de um estado eclesiástico) ensina: “No esforço de formular a difícil distinção entre a Cidade de Deus e a Cidade dos homens Agostinho estabeleceu o modelo da posição política cristã que inspirou a ordem política medieval de separação e coexistência entre Ecclesia e Imperium. A então existente identificação entre religião e política é proclamada como contrária à liberdade cristã. Não obstante quão intrincadas e complementares possam ser as duas esferas nenhuma delas poderá atuar para a consecução do que é garantido ou prometido pela outra e cada uma deverá ser entendida em seus próprios termos em acordo com o Evangelho: ‘A César o que é de César, a Deus o que é de Deus’.”

O serviço eleitoral brasileiro instituiu um Estado Eclesiástico que exige do cidadão fé embora seja vedado ao estado estabelecer culto (artigo 19, I da CF). Não apenas fé mas também submissão de súdito na medida em que repele com fúria qualquer crítica. Não resta ao súdito eleitor outra opção senão confiar na urna virtual visto que não lhe é permitida a fiscalização do escrutínio enquanto fato presente.

O escrutínio de votos, ato administrativo em sua essência e sujeito ao princípio constitucional da publicidade, no modelo puramente virtual não oferece meios ao cidadão que lhe permitam fiscalizar a autenticidade e destinação fiel dos votos aos beneficíarios. O princípio da publicidade que impõe o direito indisponível do cidadão de conhecer o escrutínio, enquanto fato jurídico presente, foi adotado como justa razão pela Corte Constitucional Alemã para recusar o modelo de urna puramente virtual. Aquela corte assentou, em síntese, que o sufrágio é direito de todos e não pode ser condicionado à alguma habilitação técnica especial para permitir a compreensão e fiscalização de todo o processo. Também pela imperiosa cidadania que exige conhecimento do escrutínio a Corte Constitucional da Índia rejeitou o modelo puramente virtual (a chamada urna eletrônica de primeira geração).

Não é o cidadão que deve se adequar ao serviço eleitoral mas o inverso. A cidadania se impõe sobre o arbítrio, conveniência ou oportunidade do serviço eleitoral. Nesses termos aquela corte constitucional alemã rejeitou o modelo de urna, idêntico ao brasileiro, puramente virtual e carente de registro físico que não permitia a fiscalização pública indiscriminada do escrutínio (Tribunal Constitucional Alemão – Bundesverfassungsgericht, julgamento 03/03/2009 das demandas 2 BvC 3/07 e 2 BvC 4/07, trazidas à corte por Prof. Dr. Ulrich Karpen, advogados Dr. Till Jaeger, Dr. Martin Jaschinski, Sebastian Biere, Oliver Brexl e Prof. Dr. Wolfgang Löwer em face do resultado das eleições nacionais alemãs de 14 de dezembro de 2006 (WP 145/05, BTDrucks 16/3600 e WP 108/05, BTDrucks 16/3600, BVerfG, Beschluss des Zweiten Senats vom 15. Juni 2009 -2BvC3/07,www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Entscheidungen/DE/2009/06/cs20090615_2bvc000307.html).

É crucial perceber que o dado digital representativo do voto não é adquirido pela urna virtual. Em sua quase totalidade os dados referidos como exemplo de utilização dos acervos digitais são adquiridos e têm rastro no mundo exterior das coisas concretas sensíveis ao ser humano. Essa rastreabilidade é penhor de confiança. Na urna virtual o voto é manifestação gerada e encerrada no obscuro ambiente eletrônico. Sem corpo físico o que se dá a conhecer pela urna virtual é uma pretensa representação da vontade manifesta pelo cidadão. Tal representação não é legítima nem metafísicamente atual, apenas potencial.

De passagem anota-se que o princípio da anualidade (anterioridade) previsto no artigo 16 da CF não se aplica aos instrumentos do serviço eleitoral pois o bem jurídico que protege é a paridade de armas no pleito pelos cargos eletivos. A intrincada armadilha estabelecida pela urna virtual deve encontrar solução ainda que à véspera da eleição. A gravidade das violações à cidadania impõe o enfrentamento urgente da questão dada a renitência do serviço eleitoral. Muitas notórias denúncias de encerramento abrupto de votação em 2018, por comportamento errático da urna virtual, indicam voto anulado para o cargo de presidente da República no primeiro turno.

Concentradas as ocorrências nos eleitores daquele que era prognosticado vencedor, como se confirmou, o fato aponta possível causa do segundo turno em vista da quantidade extraordinária de votos anulados na escolha desse candidato vencedor ao final. A propósito realizou-se então uma pretensa auditoria, onde o auditado era o próprio auditor (como de costume no imbróglio eleitoral) no TRE/SP e o comportamento errático da urna foi constatado, filmado, testemunhado e transcrito em registro de ocorrência pelo Engenheiro Dr. Amílcar Brunazo Filho (experto em TI e criptografia). O agente do serviço eleitoral, diante da constatação do comportamento indisciplinado da mascote, substituiu o teclado da urna que comprovava a adulteração denunciada pelos milhares de cidadãos sob pretexto se tratar problema de menor importância. Na pseudo auditoria se deu algo semelhante, na ótica processual penal, à substituição do corpo de delito em cena de crime. A conduta em questão do agente do serviço eleitoral folga-se na teratológica razão de que, se serviço eleitoral é suspeito, então também é o investigador e juiz da denúncia.

O mesmo experto Dr. Amílcar Brunazzo Filho havia também participado da auditoria conduzida pelo PSDB provocada pela eleição de 2014. O documento é recheado de criticas à urna virtual que se descreve em síntese abaixo:

  • 16, primeiro parágrafo: confirmou o alinhamento da gestão de TI às diretrizes do tribunal e a preocupação em não gerar prejuízo à imagem da instituição;
  • 17, primeiro parágrafo: constatou que juízes abdicam de produção de prova e limitam-se a cumprir as instruções genéricas do TSE;
  • 17, penúltimo parágrafo: não foi permitido acesso a dados de eleitores que votaram e justificaram simultaneamente;
  • 23, segundo parágrafo: a urna pode  identificar o estado de votação paralela e ocultar códigos fraudulentos (a votação paralela é uma auditoria);
  • 108, quarto parágrafo: a ausência do código do BIOS e do MSD não permitiu verificar efetiva defesa contra o ‘ataque de Princeton’ ou existência de ‘porta dos fundos’;
  • 205, primeiro parágrafo: a auditoria foi prejudicada porque negada a entrega de dados solicitados e sua coleta direta das  mídias de memória das urnas.

Dessa auditoria particular, frustrada pelas limitações arbitrárias impostas pelo serviço eleitoral, restou na imprensa a cansativa repetição de que “não foram encontradas fraudes”. A falácia consiste em que “não sendo encontrada fraude então não existem” (non sequitur). A conclusão não respeita a proposição original e dela não procede. O fato de não se encontrar algo significa apenas que não foi encontrado podendo ainda assim existir (ausência de evidência não é evidência de ausência). O que se conclui daquela auditoria é que a urna virtual não é auditável. Não há auditoria se o auditado é quem audita! O absolutismo encontrou seu Santo Graal nessa prática do serviço eleitoral. Não se estranha que sempre  conclua: “nunca houve fraude!”. A propósito, o Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da liminar requerida na ADI 5889, que suspendeu os efeitos do artigo 59-A da lei 9504/97, na folha 50 do acórdão respectivo, no quinto parágrafo, ao interromper o Ministro Alexandre de  Moraes, pontuou em síntese que “as vulnerabilidades do sistema são conhecidas da justiça eleitoral (…) por exemplo do mesário pianista (…) votando por alguém ausente (…) que se detectou no Maranhão (…) porque o eleitor que justificou ausência tinha votado”.

Como fica então a ladainha de que “nunca houve fraude” diante dessa declaração? Ocorrendo fraude em algum lugar e em algum momento porque não ocorreria em outros?

O princípio do juiz natural, que por natureza é um terceiro estranho ao interesse em litígio, foi jogado às traças. Será que os votos nulos de 2018 não encerrariam o pleito no primeiro turno? O contingente extraordinário de nulos pode ser resultado da finalização arbitrária executada pela urna virtual antes da confirmação do eleitor na digitação. O serviço eleitoral, mostrando-se enfurecido, prontamente acusou os cidadãos denunciantes de mentira e falsa notícia (usam de preferência o neologismo da modinha  midiática: fake news) ao invés de se submeter à investigação competente e independente. Tal atribuição seria da polícia judiciária que assiste o juízo federal comum posto que o imbróglio envolve serviço público federal completamente distinto da matéria eleitoral excepcional da jurisdição eleitoral. Rememorando o direito eleitoral restringe-se ao pleito e seus efeitos (candidatos e sua disputa por vagas eletivas). A competência jurisdicional excepcional deve ser compreendida restritamente como é próprio à exegese de regras que restringem. Acervos das referidas denúncias populares foram removidos imediata e arbitrariamente da rede eletrônica (v.g sítio tranparenciaeleitoral). O serviço eleitoral suspeito, no mínimo de negligência, prontamente concluiu que não havia erro na própria atuação alegando que cidadãos, tendo votado tranquilamente para Deputado Estadual, Governador, Deputado Federal e dois Senadores, depois de cinco votos operados sem dificuldade, tornavam-se incapacitados para realizar o último voto para Presidente da República. O mal súbito, quase uma pandemia, foi diagnosticado pelo serviço eleitoral como  erro do eleitor. A narrativa não convenceu a população mas prevaleceu o argumento de autoridade e a força bruta calando quem ousasse criticar o serviço eleitoral.

Na obra Direito Processual Civil, coordenada por Pedro Lenza, editora Saraiva, segunda edição, página 68 e 256, consta a lição de que, conforme estabelecido no artigo 5º, LIII e XXXVII da CF, ninguém será julgado senão pela autoridade competente e não haverá juízo de exceção. A mens legis consiste em conter o arbítrio e assegurar a imparcialidade. (…). A imparcialidade é garantia ao jurisdicionado e decorrência do princípio do juiz natural que impede que as partes possam escolher o juiz da causa. (…). O problema é que o serviço eleitoral não se vê como parte quando há  crítica à urna virtual.  A própria máquina ganha humanidade e é posta como indiciada. Seu operador então a julga e, paternal, acolhe a mascote com juízo benevolente.

O escrutínio deve ser expressão fiel do sufrágio (artigos 158-224 do CE). No processo eleitoral a fase mais sensível é o escrutínio porque nela se constata a buscada vontade da maioria. A primazia da vontade da maioria é o único método exequível para convivência entre seres livres aos quais a escolha não se pode tolher mas apenas pacificar aritmeticamente. O artigo 174 do Código Eleitoral deixa evidente a necessidade imprescindível de exame público e  individual voto a voto durante o escrutínio. O artigo 192 do Código Eleitoral também evidencia a necessidade imprescindível do exame público individual cédula por cédula.

A fiscalização de todas as fases do processo de votação é uma determinação legal e a urna, seja qual for sua matéria, deve garantir a mais ampla fiscalização conforme os artigos 61 e 66 da lei 9504/97. Qualquer restrição à fiscalização do escrutínio é fundamento de impugnação e anulação (artigos 165, VII, § 4º e 221, II do CE). Os artigos 315, 348 e 350 do CE tipificam como crime a alteração da correspondência entre o voto e seu destinatário seja pela alteração do voto, mapa ou boletim de urna e essa determinação ressalta a relevância da ampla fiscalização voto a voto. A urna virtual nem mesmo permite a investigação de tais hipóteses visto que a eventual adulteração não permanece no ambiente virtual e volátil do ambiente eletrônico. Eventual comando malicioso obviamente será habilitado a apagar seus rastros seguro pela inexistência de rastreabilidade no mundo exterior.

Destaca-se ainda que o artigo 7º da lei 1079/50 tipifica como crime de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos (3) violar o escrutínio de seção eleitoral pela subtração, desvio ou inutilização do respectivo  material. A norma impõe preservar o fato presente do escrutínio e não apenas meros resultados consequentes. O serviço eleitoral deve garantir ampla fiscalização conforme determinam os artigos 61 e 66 da lei 9504/97 ao invés de dificultar.

São irrelevantes e burlescas as ditas auditorias porque anteriores ou posteriores ao fato do escrutínio. A incidência da norma se dá sobre o fenômeno jurídico não sobre seus prognósticos ou consequências. Determina-se a reparação das consequências mas em razão da ilicitude da  conduta. Supor o quê a urna virtual realizará ou  o quê realizou tendo para isso apenas os resultados do escrutínio que se extinguiu no passado é obviamente inútil. Ademais, a inteligência artificial que tem registro de hora e data, pode facilmente condicionar suas respostas à conveniência de um momento que não retrata uma  eleição oficial efetiva. Como no jogo da imitação ou no teste de Turing a máquina pode dialogar com seu juiz convenientemente.

Os que veneram a urna virtual acusam retrocesso no retorno à prova física do voto esbravejando o princípio do não retrocesso. Típica falácia de falsa analogia!  O valor importante na aplicação do referido princípio está na escala de aquisição direito de cidadania. A evolução ou retrocesso tecnológico nos instrumentos do serviço público são completamente irrelevantes nessa ótica. Entretanto, fazem deliberadamente  proposição consistente em que “se a urna virtual é moderna em face do papel este seria retrocesso à luz do referido princípio”. Verdadeiro retrocesso se deu sobre o direito de cidadania quando da adoção da urna virtual porque voltamos sessenta  anos aos tempos da Velha República onde o voto era declarado à autoridade competente e o cidadão alijado do escrutínio. À época consagrou-se expressão fraude no bico da pena em referência a caneta que adulterava o voto ajustado aos interesses da política do café com leite. Na década de 30 surge a prova física do voto garantindo o exercício secreto mas também o escrutínio público. Na década de 90 retrocedemos ao escrutínio secreto perdendo em cidadania, democracia e espírito republicano. Hoje esse retrocesso representa quase um século. A falácia que invoca o princípio do não retrocesso maliciosamente impede de fato a recuperação do direito lesado pelo escrutínio secreto embutido no Cavalo de Tróia tupiniquim.

A autorização legal (art. 173, § único do CE) para uso do sistema eletrônico na apuração não autoriza a violação dos princípios jurídicos que se impõem sobre o serviço eleitoral e o ato administrativo do escrutínio. A ferramenta incapaz de garantir o exercício secreto do voto e respectivo escrutínio público não é tecnologicamente eficaz a despeito de quanto seja moderna. A urna puramente virtual é um mito como o Cavalo de Tróia.

Equivocadamente a Seita do Santo Byte insiste que deve ser reverenciada a tecnologia em vista de que tal qual a milagrosa máquina o sistema financeiro mundial opera em moldes digitais agasalhando com segurança valores e direitos de grande escala. Porém o sistema financeiro opera em absoluta e irrestrita privacidade e se beneficia dessa condição além de ter garantida a rastreabilidade externa de seus dados o que não ocorre no sistema eleitoral. O processo eleitoral deve atender ao imperioso princípio da publicidade nas etapas que sucedem ao exercício sigiloso do voto. O sigilo do exercício do voto não se aplica ao escrutínio. Enquanto no sistema financeiro o sigilo garante a segurança, por outro lado, no processo eleitoral, somente a publicidade do escrutínio garante segurança jurídica.

Vincular a cédula de papel às fraudes como fosse causa daquelas é sofisma de falsa causa. A urna puramente virtual não impede a fraude mas a fiscalização.  A cédula física não permite a fraude mas a fiscalização. A causa eficiente da fraude é o ser humano. Entretanto, os prosélitos da seita, assim como atribuem humanidade à urna nas auditorias em que colocam a máquina no lugar do fiscalizado também tratam a cédula fantasiando o instrumento como se sujeito fosse. A cédula física, prevista como salvaguarda no artigo 59 da lei 9504/97, a despeito de sua antiguidade, sempre deteve tecnologia bastante para cumprir as exigências jurídicas impostas ao serviço eleitoral (exercício secreto do voto e escrutínio público).

Pontua-se que o Ministro Ayres Britto em 2009 registrou no Comunicado 010/2009/TSE que as urnas desde aquele ano eram capazes de gerar o voto impresso bastando a anexação de módulo impressor sendo absolutamente desnecessário o desenvolvimento de nova urna. À época  havia sido provocado em razão da norma então vigente que determinava o meio necessário ao escrutínio público. Sob tal perspectiva o Ministro Fux, na presidência do TSE (2018), licitou a compra dos módulos impressores até que houve a interposição da bisonha ADI 5889 obstando aquelas providências. A gestão precedente do Ministro Gilmar Mendes não tinha justificativa razoável para circular em torno da malfadada busca de um novo protótipo de urna. A questão estava resolvida por Ayres Britto desde 2009 tanto que foi adotada pelo Ministro Fux na sequência. No acórdão da liminar da ADI 5889 o Ministro Fux, na folha 127, declara que fez a referida licitação e escolheu vencedor mas que, ante aquele julgamento, revogaria o certame. Curiosamente nesse mesmo julgamento o Ministro Alexandre de Moraes, justifica o desprezo ao escrutínio público do voto e, ignorando o depósito do voto impresso sem contato manual previsto expressamente no artigo impugnado,  indaga: “quem levará o voto impresso até o eleitor para ele conferir e colocar na urna?”. O ministro sugere não conhecer o artigo de lei que estava repelindo.

A força política da prova física do voto é relevante. Os mandatários do povo, representando a maciça vontade soberana da nação brasileira, derrubaram o veto presidencial e mantiveram o voto impresso na reforma eleitoral com setenta e um por cento dos membros do poder legislativo (71%).  Ilustrando, o quórum de emenda constitucional é de 3/5 do parlamento sendo 49 votos do senado e 308 da câmara que somam 357 votos. O voto impresso foi mantido pela força expressiva de 424 votos.

Ainda tratando de auditorias, a resolução 23.550/2017 do TSE (artigos 47-56) criou a dita auditoria em condições normais de uso, despicienda, no entanto, eis que ao submeter uma inteligência artificial à auditoria é imprescindível que não lhe seja permitido condicionar respostas. O Princípio da Independência do Software em Sistemas Eleitorais, cunhado em 2006 pelo Ph.D. do MIT Ronald Rivest e pelo pesquisador do NIST Jonh Wack para enfrentar a dificuldade de se validar e certificar o software usado em máquinas de votar (denominado Software Independence Revisited), consiste basicamente em que o objeto auditado não pode condicionar a auditoria!

A denominada auditoria em condições normais de uso deveria ser realizada concreta, objetiva e plenamente em condições normais de uso de tal maneira que a inteligência artificial da urna virtual não detivesse meios de detectar que está sob fiscalização. Não há outra significação possível para o adjetivo normal constante na resolução 23.550/2017 do TSE senão a de que se pretendeu fiscalizar objetivamente o comportamento da inteligência artificial da urna em uma idêntica operação normal de uso durante o processo de votação. Qualquer dado diverso (data ou horário não previstos oficialmente para eleição; inserção de dados por via diversa da operação ordinária pelo eleitor em dia de eleição; simulação com dados fictícios; etc) é  capaz de inutilizar a pretendida auditoria porque alerta a inteligência artificial de que está sob exame permitindo que a reação da urna virtual seja ajustada (como no  teste de Turing). Todos os expedientes adotados para auditoria do software, sem qualquer exceção, são dependentes do objeto auditado permitindo que o mesmo condicione suas respostas. A dita auditoria em condições normais de uso não é auditoria nem mesmo ocorre em condições normais de uso.

Outra falácia de falsa analogia é a “zerésima”. A cereja do bolo das auditorias, realizadas pelo próprio auditado, consiste em demonstrar que a “a urna está vazia de votos”. Procede-se a cerimônia litúrgica indagando à urna virtual sobre seu conteúdo mediante o que ela responde não conter nenhum voto. Os prosélitos louvam o ídolo atestando o ritual. Ocorre que a urna virtual difere da urna física visto que suas causas eficiente e material são muito distintas. O ato de ser voto na urna física tem motor e causa material convenientes à referida demonstração porque tal instrumento é incapaz de prover o próprio conteúdo. A urna virtual, com causa eficiente e material distintas (da urna física), submetida à burlesca cerimônia, nada faz além de entreter os presentes. O motor do voto na urna puramente virtual pode prover-lhe conteúdo em razão de sua automação.

É certo que nada é causa de si mesmo (à exceção do primeiro e único Motor Imóvel) porque teria que existir antes mesmo de ser. Dessa constatação emerge que a urna física é incapaz de dar causa ao voto e valida a demonstração de seu vazio. Entretanto, a urna virtual enquanto inteligência autônoma, é capaz de ser causa eficiente do voto que contém. Cabe aqui esclarecer a análise devida do que seja a urna virtual. A urna não é o software mas o depósito dos dados gerados pelo mesmo! Urna é ontologicamente depósito. O software tem a urna mas é mais que isso obviamente. A urna física apenas recebe passivamente em depósito os votos e cumpre sua função de estocar conteúdo. Na inteligência artificial temos muito mais que o singelo depósito. Os construtos do software processam a matéria prima, que deveria ser a vontade manifesta pelo eleitor, e criam o conteúdo que será armazenado. O armazenamento é propriamente a urna virtual representado pelo RDV (registro digital do voto). Essa compreensão faz evidente o fato de que a manifestação de vontade entregue ao software não resulta diretamente no ato metafísico do voto o que viola a cláusula pétrea do voto direto. Ao criar o dado digital supostamente correspondente à matéria prima recebida a inteligência artificial faz mais porque procede ao escrutínio já destinando imediatamente o voto a algum beneficiário, acumulando, somando e totalizando os votos que criou autonomamente. Todo esse proceder é completamente estranho aos domínios do eleitor votante e escapa às autoridades eleitorais em sua maioria. Em velocidade superior a mil kbps a cada confirmação de voto é realizado um escrutínio secreto, fugaz, eventual. O escrutínio se extingue e jamais será conhecido. Por consequência é impossível a recontagem de votos no molde da urna puramente virtual. Também, por óbvio, o escrutínio em si é  inauditável.

Aqueles que já compreenderam a gravidade de uma eleição onde somos meros figurantes entendem a distância que estamos de um modelo verdadeiramente democrático e republicano. Democracia e República denotam senhorio do povo mas de fato estamos debaixo do senhorio do serviço eleitoral tutelado pelos ministros da corte constitucional. A soberania nacional está em risco se não é o povo que decide o destino da nação. A ordem política e o regime democrático representativo não subsistem sem soberania popular exercida pelo sufrágio universal, direto e orientado pelo escrutínio público. A cláusula do exercício secreto do voto não repele a também pétrea cláusula do voto direto nem mesmo o escrutínio público imposto pelo princípio da publicidade. Ao invés de orgulhar-se da roupa nova prodigiosa o povo brasileiro deveria envergonhar-se da nudez de sua cidadania imposta pelo arbítrio do serviço eleitoral. Orgulhosas devem ser as nações que podem contar e recontar seus votos em escrutínio público. Não por acaso, apesar de dominarem tecnologia de ponta, fazem prova física do voto.

Felipe M. Gimenez – advogado (OABMS7580)
                                                                  (ativista político, procurador do Estado/MS)

 

Adicional – como auditar urnas eletrônicas sem voto impresso (scketch):